(Imagem de Mario Aranda por Pixabay)

Óbitos em massa de idosos por Covid-19 confirmam ineficácia de políticas públicas no Brasil

Por José Pedro Soares Martins

Entre os 239.245 óbitos por Covid-19 no Brasil, registrados até o dia 14 de fevereiro de 2021, mais de 160 mil foram de pessoas de 60 anos ou mais. É uma geração de filhos e netos que perderam os pais e avós. São sofrimentos que não podem ser contabilizados nos números frios das estatísticas. A pandemia tem mostrado resultados brutais para os idosos brasileiros e seus familiares, ratificando a ineficácia das políticas públicas adotadas até o momento para proteger esse segmento populacional que mais cresce no país.

Como nota o infectologista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Paulo Abati, a letalidade entre os idosos de 60 anos ou mais, em decorrência da Convid-19, é mais alta porque essa faixa etária é mais vulnerável ao novo coronavírus. “Eles possuem um sistema imune mais frágil, tendo então um poder de combate ao vírus menor do que jovens. Os idosos também tem normalmente outras doenças crônicas, como pressão alta, insuficiência cardíaca, diabetes, problemas pulmonares. Então, tanto pelo envelhecimento e diminuição da imunidade, como pelas doenças mais frequentes na população idosa, esse grupo é mais vulnerável à Covid-19”, explica o médico, que também atua na rede pública de saúde do município de Campinas.

Paulo Abati: vacinação urgente para idosos (Foto Acervo Pessoal)

De fato, os números da evolução da pandemia apontam que idosos com 60 anos ou mais e com comorbidades são aqueles com mais alta letalidade para Covid-19. Entre os 191.552 óbitos de Síndrome Respiratória Aguda Grave ( SRAG) por Covid-19 notificados no Brasil em 2020, portanto entre as Semanas Epidemiológicas 08 e 53, 125.814 (65,7%) apresentavam pelo menos uma comorbidade ou fator de risco para a doença, segundo o Ministério da Saúde. “Cardiopatia e diabetes foram as condições mais frequentes, sendo que a maior parte destes indivíduos, que evoluiu a óbito e apresentava alguma comorbidade, possuía 60 anos ou mais de idade”, informou o Boletim Epidemiológico Especial 44 sobre Covid-19.

O panorama não se modificou em 2021. Pelo contrário, a proporção de mortes entre pessoas com 60 anos ou mais aumentou, de 69,2% em maio de 2020 para 74,2% na última semana de janeiro de 2021, conforme os dados compilados a partir dos boletins do Ministério da Saúde. Em países europeus o percentual de óbitos entre cidadãos de 60 anos ou mais é maior, mas é preciso considerar que eles possuem proporcionalmente uma população idosa maior que a brasileira.

Zelia Vieira de Moraes, médica geriatra: contra o etarismo (Foto Acervo Pessoal)

Descaso com os idosos no Brasil

Como lembra o próprio Paulo Abati, se os idosos são mais vulneráveis naturalmente à Covid-19, o maior número de óbitos nessa faixa etária não pode ser atribuído somente a fatores como a baixa imunidade e às comorbidades. “Também diz respeito à forma como a sociedade e os governos lidam com a questão do envelhecimento. Infelizmente o nosso sistema de saúde não consegue ser efetivo no controle da saúde das pessoas mais idosas”, comenta o infectologista da Unicamp.

Ele nota que há dificuldades “no acesso aos serviços de saúde, aos postos, às medicações”. Cita também “os baixos valores da aposentadoria que eles recebem e que fazem com que não tenham condição de tomar todos os medicamentos que são prescritos. Nem todos estão disponíveis na atenção primária. Muitos idosos também precisam fazer reabilitação, atividade física, e não encontram acesso no serviço público, e por tudo isso têm maior tendência de apresentarem doenças crônicas, degenerativas, e portanto apresentam maior risco de adoecimento pela Covid”, acrescenta o especialista.

Abati observa ainda que a taxa de câncer na população idosa também é maior, “e isso certamente é em razão de como a sociedade lida com a alimentação, o tabaco, o álcool, ou mesmo o serviço de saúde não fazendo o rastreamento precoce das doenças na população idosa”. Desta maneira, ele entende que “não apenas o envelhecimento em si, mas a resposta dos governos e das politicas públicas, muito inefetiva em relação à população idosa, faz com que ela tenha mais doenças e maior risco de ter a Covid-19”.

Na mesma linha, de análise, o gerontólogo e epidemiologista Alexandre Kalache, um dos maiores nomes sobre a temática do envelhecimento em âmbito internacional, entende que os dramas da população idosa continuam invisíveis no Brasil, “e o que é invisível é facilmente ignorado”.

Fundador do Departamento de Epidemiologia do Envelhecimento da London School of Hygiene and Tropical Medicine, Kalache entende existir no Brasil o fenômeno conhecido como idadismo ou etarismo, o preconceito ou intolerância contra os idosos, segundo o termo lançado pelo gerontólogo norteamericano Robert Neil Butler.

“A sociedade brasileira é muito hedonista, voltada para a juventude eterna, a beleza eterna. Enquanto isso, a maioria da população chega muito mal aos 60 anos, como fruto das más condições de vida, da desigualdade que coloca lado a lado uma favela com milhares de moradores e um bairro com privilegiados”, destaca Kalache.

O gerontólogo adverte que o processo de envelhecimento ocorre de forma muito rápida no Brasil, o que demanda a urgência de ações mais efetivas em relação à população idosa. Ele faz uma comparação com o que acontece no Canadá. Em 1950, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais era de apenas 4,9% no Brasil, e já era de 11,3% no Canadá. Em 2015, chegou a 12,8% no Brasil e a 25,3% no Canadá. As projeções para 2050 são de que o Brasil terá 30,5% de sua população com 60 anos ou mais, enquanto no Canadá será de 30,1%.

Médica geriatra do Instituto Vimos, de Campinas, Zélia Vieira de Moraes observa que o alerta em relação à maior vulnerabilidade dos idosos à Covid-19 vem sendo dado desde o início da pandemia. O mesmo em relação aos “subgrupos mais vulneráveis clinicamente: pacientes frágeis, portadores de síndromes demenciais, de doenças crônicas e moradores de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)” .

“Os números significam que há erros graves nas políticas públicas e na sociedade. E os números servem para isto: nos mostrar estes erros e nos permitir operacionalizar mudanças concretas e efetivas”, adverte a especialista. “Devemos de fato priorizar os cuidados oferecidos a esta população, tanto na prevenção da doença, como na estruturação eficiente de serviços na atenção e suporte de cuidados, além da discussão sobre mecanismos de financiamento, público e privado, para cuidados de longa duração. É mais que urgente a integração entre serviços de saúde e a assistência social necessária”, comenta a geriatra.

Um aspecto importante a considerar, destaca Zélia Vieira de Moraes, é que “os idosos são hoje muitas vezes responsáveis pelo sustentos de suas famílias e estas vidas perdidas poderão também representar perdas econômicas importantes”. Ela cita o estudo “Os Dependentes da Renda dos Idosos e o Coronavírus: Órfãos ou Novos Pobres? , do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrando que em 20,6% dos lares brasileiros a renda dos idosos responde por mais de 50% dos rendimentos da família.

Esperança com as vacinas

Uma esperança para os idosos brasileiros, e para a população em geral, foi aberta com o inicio da vacinação contra a Covid-19, começando pela população com faixas etárias mais elevadas, os profissionais da área da saúde e grupos vulneráveis como os indígenas.

Mas Paulo Abati alerta que ainda está ocorrendo lentidão na cobertura vacinal para a população idosa. “Neste momento já era para estarmos com a população idosa vacinada no Brasil”, diz o médico infectologista, lembrando que o Brasil conta com o Sistema Único de Saúde (SUS) e um Plano Nacional de Imunização que são referências mundiais em políticas públicas.

“Era para estarmos em um ritmo mais acelerado de vacinação. O que precisamos fazer de modo urgente é ampliar a capacidade de oferecer as vacinas contra Covid-19 e vacinar o mais rápido possível a população idosa brasileira”, alerta. O infectologista entende que melhores perspectivas futuras para a população idosa brasileira dependem essencialmente de “atingirmos alta cobertura vacinal, para que a população idosa tenha maior condição de circulação, de retornos às práticas de atividade física e de interação social, além do atendimento à saúde, uma vez que muitos idosos estão hoje em suas casas e não podem ir a consultas médicas que são importantes para eles”.

No dia 4 de fevereiro a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) emitiu uma Nota Técnica sobre “Acesso prioritário à vacinação contra a Covid-19 para as pessoas idosas com limitações funcionais e seus cuidadores”. Considerando a prioridade que o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, lançado em dezembro de 2020 pelo Ministério da Saúde, indicou para os profissionais de saúde e idosos divididos por faixas etárias, os autores da Nota Técnica afirmaram: “Entendemos que não é simples identificar todas as condições que determinam as prioridades num plano de vacinação, mas num contexto atual de alta mortalidade por Covid-19 e carência imediata de vacinas para todos, propomos que sejam incorporados critérios que ajudem a identificar a população mais vulnerável. Especificamente, defendemos: a) a incorporação do critério de capacidade funcional dos idosos, de forma complementar ao critério de idade, como indicador da situação da saúde; b) a adoção de estratégias para vacinar idosos com dificuldade de sair de casa; c) que a prioridade da vacinação inclua efetivamente os cuidadores de idosos que atuam nos domicílios, sejam estes um familiar ou uma pessoa contratada”.

A Nota Técnica da Fiocruz salienta que, no Brasil, estima-se que existam “cerca de 5, 2 milhões de idosos que necessitam de ajuda para as suas atividades da vida diária. Em pelo menos 80% dos casos, o cuidado é prestado por algum familiar e em 20% este é prestado por uma cuidadora remunerada, o que inclui os arranjos em que a prestação de cuidados se dá de forma mista entre pessoas contratadas e familiares. Dessa forma, estimamos que existem cerca de 4,2 milhões de familiares que cuidam de idosos e 1 milhão de cuidadores de idosos contratados ou remunerados”.

Assim, os autores da Nota Técnica apresentam várias razões para propor: ” que idosos com limitação da capacidade funcional sejam considerados prioridade independentemente de sua faixa etária; b) a adoção urgente de estratégias para vacinar idosos com dificuldade de sair de casa; c) a vacinação dos cuidadores de idosos que atuam nos domicílios, sejam estes um familiar ou uma pessoa contratada”.

Depois da pandemia

No Brasil e no mundo pós-Covid, será fundamental uma mudança de postura e olhar de governos e sociedade em geral em relação aos idosos, defendem os especialistas. O infectologista Paulo Abati sustenta ser essencial “um cuidado integral com a saúde da população idosa”.

“Cuidado integral significa dar acesso à saúde, mas acesso também a um envelhecimento saudável, com políticas de cultura para a população idosa, interação social, atividades físicas, reabilitação. As taxas de depressão na população idosa são extremamente altas, muito em função da falta de estrutura para essa população interagir socialmente”,

Para a geriatra Zélia Vieira de Moraes, “devemos mais do que nunca olhar a velhice sem o viés do preconceito (etarismo), mas considerando a necessidade de reconhecimento da representatividade desta população e sobretudo com a responsabilidade no cuidado daqueles com alto nível de dependência, numa faixa etária que cresce ano a ano e que representará quase 30% da população brasileira em menos de 30 anos”.

O gerontólogo Alexandre Kalache defende, por sua vez, que sejam construídas e executadas políticas públicas efetivas para atender aos quatro pilares que considera determinantes para um envelhecimento ativo: a garantia da saúde, o conhecimento, o capital social e a segurança, para a proteção dos idosos contra várias modalidades de violência.

De qualquer modo, mais do que nunca no pós-pandemia serão vários os desafios para o pleno respeito ao Artigo 3o do Estatuto do Idoso, de 01 de outubro de 2003:  “É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

  1. Excelente matéria. A sociedade precisa ser intimada. Não podemos continuar como cegos, surdos e mudos frente a este genocídio. Defendo uma ampla reforma dentro da nossa política – com salários e mordomias dos governantes reduzidos e exigência em cumprir a pauta da Saúde-SUS e Educaçao de forma permanente, até que se cumpra o objetivo de atender toda a população, nem que demore 20 anos.

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