A violência na velhice está marcada no Brasil por omissões não notificadas. Imagem de dpexcel por Pixabay.

A obscura violência contra a pessoa idosa que o Disque 100 não mostra

Paulo Cesar Nascimento

As denúncias de violações de direitos humanos contra o grupo de pessoas Idosas no Brasil ocuparam em 2019 a segunda maior demanda do Disque Direitos Humanos – Disque 100, com um total de 48.446 denúncias. Este número representa 30% do total de denúncias registradas na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

O último diagnóstico (faça o download aqui para mais detalhes), divulgado neste mês, também demonstra que houve um crescimento na ordem de 29% no número de casos na comparação com o exercício de 2018, que apresentou 37.454 denúncias.

Negligência, violência psicológica, abuso financeiro, violência física e violência Institucional são as principais violações sofridas por pessoas idosas, em sua maioria, na casa da vítima (81% das ocorrências), realizadas por pessoas do convívio familiar ou próxima à vítima, conforme o relatório do Disque 100.

Há, contudo, uma violência que não aparece nos registros do serviço, embora seja tão grave quanto aquelas denunciadas, e que se caracteriza pela omissão do Estado em relação aos direitos das pessoas idosas, conforme aponta a assistente social com especialização em Política Social e máster em Gerontologia Social, Albamaria Paulino de Campos Abigalil.

“No Brasil, a violência na velhice está marcada por uma face obscura de ações e omissões não notificadas, que afetam a qualidade de vida e a integridade física, psicológica, laboral e social das pessoas idosas”, afirma. “Embora o diagnóstico indique que a violência ocorre no núcleo familiar, eu, como pesquisadora, entendo que o maior violador dos direitos da pessoa idosa é o próprio Estado”.

Envelhecimento saudável inviabilizado

Alba participou da elaboração e implementação da Política Nacional de Atenção à Pessoa Idosa e do Estatuto do Idoso, foi Secretária Nacional de Promoção Humana do Ministério de Bem-Estar Social, participou como membro do Conselho Nacional de Defesa de Direitos do Idoso, no período de 2002 a 2018. Atuou ainda na implementação de Centros de Enfrentamento à Violência das Pessoas Idosas no Brasil e atualmente Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa-NEPPOS-UNB, na área do Envelhecimento.

“Quando o Estado não vê a especificidade do processo de envelhecimento e não garante os serviços, isso é uma violência estrutural”.

Em entrevista exclusiva ao LONGEVINEWS, Alba observa que o país, assim como o restante do mundo, experimenta um momento ímpar de mudança de paradigma no envelhecimento, passando de uma perspectiva que até então enxergava esse processo como uma questão epidemiológica, no contexto da transição demográfica, para uma perspectiva do envelhecimento ativo, onde as pessoas podem continuar a participar de uma série de atividades em sua velhice. Mas para isso é preciso que o Estado e a sociedade garantam políticas de seguridade social capazes de assegurar o envelhecimento saudável para a atual e para as futuras gerações.

“Contudo, a crise estrutural do capital e agora a crise sanitária que estamos vivendo com a Covid-19, aliadas às contrarreformas trabalhistas e previdenciárias, estão inviabilizando o processo de envelhecimento saudável no país”, assinala.

Ela cita a Emenda Constitucional n.º 95, conhecida como a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, como exemplo do que ela denomina violência estatal ou estrutural. A medida alterou a Constituição brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal, limitando o crescimento das despesas do governo brasileiro com saúde e educação durante 20 anos.

“Uma emenda que congela recursos na área da saúde inviabiliza o processo de envelhecimento”, ilustra. “Temos 31 milhões de idosos, segundo a revisão populacional do IBGE de 2018, e sabemos que, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, de 2013, 70% desse contingente são independentes, em torno de 17% apresentam algum grau de dependência e cerca de 7% apresentam dependência e exigem cuidados. Não estamos dizendo que a velhice se caracteriza como doença, mas o perfil epidemiológico da população idosa traz algumas comorbidades que precisam ser tratadas. Portanto, quando o Estado não vê a especificidade do processo de envelhecimento e não garante os serviços, isso é uma violência estrutural”, argumenta.

Negligência estatal

Alba constata também uma violência obscura quando o Estado não garante a política de assistência social requerida pela população idosa.

“Teríamos de ter instituições de longa permanência estruturadas para acolher pessoas idosas que estão em situação de abandono ou cujas famílias não tem condições momentâneas de ficar com elas em suas residências. Faltam também centros-dia, que são serviços de atenção aos idosos onde filhos que precisam trabalhar poderiam deixar os seus pais até o retorno ao lar à noite, bem como casas-lares, residências temporárias para receber idosos após alta hospitalar quando eles não têm para onde voltar”, relaciona.

Albamaria Abigalil

De acordo com ela, esse quadro caracteriza uma negligência estatal, uma vez que a disponibilização desse tipo de assistência está prevista na Política Nacional do Idoso e no Estatuto do Idoso.

Ela também chama a atenção para o fato de não se notificar no Brasil o número de cuidadores informais de idosos, geralmente filhos ou esposas, que acabam desempenhando esse papel na impossibilidade de contratar um cuidador profissional e por não contar com serviços de apoio que deveriam ser providenciados pelo poder público.

“A família de uma pessoa idosa hoje é muito sobrecarregada, sobretudo aquelas mais pobres, porque o Estado transfere a ela parte de sua responsabilidade. Então, para poder exercer em casa a função de cuidador, o filho ou a esposa, geralmente acabam deixando o mercado de trabalho. E aí temos outro problema: como fica o processo de envelhecimento dessa pessoa sem uma renda?”, indaga a pesquisadora.

Impactos na renda

Ainda segundo Alba, o acesso ao Benefício de Progressão Continuada (BPC) tornou-se outro exemplo de violência estatal obscura no país contra a pessoa idosa.

“Com a contrarreforma da Previdência, o INSS foi totalmente desestruturado, desestabilizado, e as pericias estão todas represadas. Quantos idosos estão aguardando a perícia para ser aceitos no benefício e não estão conseguindo?”. Ela prossegue: “O que o governo fez na pandemia? Definiu que para os idosos nessa situação pagaria uma renda de R$ 600,00 até a realização da perícia. Mas com esse valor um idoso pobre consegue se manter, sabendo que na maioria das vezes é ele quem sustenta a família, os filhos e netos desempregados?”.

Esse enfraquecimento da seguridade social na fase de vida em que mais precisariam de proteção e o impacto negativo na renda familiar, têm empurrado pessoas idosas de volta ao mercado de trabalho, mesmo com o maior risco ante a Covid-19, nos domicílios que dependem da força de trabalho dos idosos, observa Albamaria. O fenômeno foi retratado em recente pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (leia aqui) que analisou impacto da pandemia no trabalho e renda da pessoa idosa na pandemia.

“Sem suporte financeiro, os idosos estão sendo obrigados a sair de casa e a arriscar suas vidas, porque têm a responsabilidade de manter seu processo de envelhecimento e ainda precisam sustentar filhos e netos desempregados”, explica.

“Quando o Estado brasileiro se afasta de seu papel social e quer transferir esse papel para o mercado, para a economia, para as famílias, ele se desresponsabiliza da proteção social. Nesse caso, é uma omissão, e se é uma omissão, isso se enquadra no artigo do Estatuto do Idoso que diz que a violência é uma ação ou omissão, pública ou privada”, argumenta.

Óbitos na fila do SUS

A negligencia estatal também fica demonstrada no enfraquecimento do programa de saúde da família, que deveria cobrir o Brasil todo, porém só cobre 50% da população, e nas dificuldades enfrentadas pelo idoso que precisa fazer um exame de média e alta complexidade no SUS.

“Quando o idoso precisa de um exame de alta complexidade na rede do SUS, esse exame é negado e ele vai a óbito, isso não é registrado como violência contra a pessoa idosa, embora seja. Como também não é notificada como negligência o fato de um idoso ir a óbito após esperar dois, três anos na fila de uma hemodiálise. Isso é uma violência contra a vida”, acentua a pesquisadora.

E outro exemplo de violação de direitos da pessoa idosa perpetrada pelo Estado, lembra Alba, foi a desestruturação da gestão pública na Política Nacional do Idoso por meio do decreto que acabou com o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa – CNDI (leia aqui matéria do LONGEVINEWS), órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que formula diretrizes para a Política Nacional da Pessoa Idosa.

“Com a desestruturação do Conselho, a população idosa não se faz representar, ela não tem assento no colegiado para levar as suas demandas de trabalho, de previdência, de saúde, de assistência social, não tem voz, e os órgãos que implementam as políticas de envelhecimento também não estão presente. Essa é mais uma violação de direitos que esse relatório do Disque 100 não traz ”.

Avanços na conscientização

Ela observa que, a permanecer essa tendência no Brasil de retirada de direitos e de violência contra a pessoa idosa, será necessário ratificar as deliberações da histórica Reunião Regional da Sociedade Civil da América Latina e Caribe Sobre Envelhecimento Madri +15, realizada em Ipacaraí (Uruguai), em 2017.

Nesse encontro, considerado um marco da mobilização pelos idosos na América Latina, organizações não governamentais se reuniram e deliberaram pela necessidade de uma inversão de pauta nas políticas dos países latino-americanos, em especial do Brasil, para que as questões dos direitos humanos tivessem prioridade sobre as questões econômicas.

De forma geral, Albamaria reconhece que a sociedade está avançando na tomada de consciência de seus direitos e, por mais que seja colocado que o idoso não está tendo visibilidade, vem ocorrendo uma mobilização muito grande por parte da sociedade civil na questão da conscientização. Exemplos disso são as universidades que trabalham junto às pessoas idosas, os conselhos de defesa de direitos, os órgãos gestores, a própria estruturação do SUS e do SUAS, com serviços e programas que fazem com que os idosos e suas famílias tomem consciência.

“Eu concordo que tivemos muito avanço na legislação, o trabalho dos gestores é bastante amplo, dos conselhos de defesa de direitos, mas ainda existe na sociedade uma subnotificação e, além disso, uma não consciência da questão da violência à pessoa idosa quando praticada pelo Estado”, sintetiza.

Serviço tem somente 30% de resolutividade

Apesar do aumento gradativo no número de denúncias ao Disque 100, as inúmeras violações são subnotificadas, os números apresentados não revelam a magnitude desse fenômeno, conforme reconhece o próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) no texto do relatório.

De acordo com Albamaria Abigalil, a questão da violência está tendo mais visibilidade no Brasil a partir do Estatuto do Idoso, porque a partir dele tanto a Política Nacional do Idoso quanto o próprio Estatuto passaram a tratar das questões do envelhecimento também pela ótica dos direitos sociais. Logo, a violência é uma forma de transgressão dos direitos da pessoa idosa e suas manifestações mais visíveis, como a violência doméstica, vem sendo denunciadas ao Disque 100.

“No entanto, temos estudos que demonstram que as denúncias têm somente 30% de resolutividade”. Esse percentual, segundo ela, é resultado da fragilidade do aparato de proteção social no país.

Albamaria salienta que, apesar de um grande esforço das equipes técnicas do SUAS e do SUS, bem como de outros sistemas na ótica dos direitos sociais que já avançaram muito, a rede de serviços de proteção no Brasil encontra-se ainda muito fragilizada, precisando ser fortalecida com recursos humanos e financiamento.

“O Estatuto do Idoso representou um grande avanço, porque trouxe uma visibilidade, conseguimos implantar, em 2007 e 2008, 19 centros de combate a violência contra as pessoas idosas, temos as Procuradorias, as Promotorias de Defesa de Direito. Quando uma pessoa idosa consegue notificar a violência, é necessário fazer todo um trabalho com ela, com a família, e encaminhar para a rede de serviços. Porém, essa rede, que seria a Rede Nacional de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa, está fragilizada. Não consegue muitas vezes dar encaminhamento aos serviços da comunidade, ou porque eles inexistem, ou não há vaga ou ainda demoram para o atendimento”.

Falta acompanhamento

Para o 1º Vice-Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa – CIDOSO, o deputado estadual Denis Bezerra (PSB/CE), O Disque 100 carece de um processo de acompanhamento da denúncia relatada.

“O serviço simplesmente recebe a denúncia, encaminha para o Estado de origem ou para o município onde está localizado o problema, e não há um follow up do Ministério para saber se a solução daquela questão foi feita da forma adequada ou até mesmo correta”, observa.

Denis Bezerra

Na opinião dele, um aprimoramento nesse sentido traria como resultado a oportunidade de divulgação de índices de solução a contento proporcionada para o conjunto de denúncias, colaborando para melhorar ainda mais a confiança do público na utilidade do serviço.

Conforme ele observou, o aumento no número de denúncias não é um fato novo e reflete não apenas a maior conscientização do denunciante em relação à violação de direitos, seja ele a vítima ou alguém que tem conhecimento de uma violação, mas também é decorrente do processo de crescimento da população idosa no Brasil.

Projeto que susta decreto 9893/19 aguarda

Ao LONGEVINEWS Denis Bezerra também comentou sobre o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 454/19, aprovado no âmbito da CIDOSO em novembro do ano passado, que busca sustar o decreto presidencial 9893/19 que alterou a composição e as regras de funcionamento do CNDI.

Ele lembrou que ao estabelecer que o Conselho passasse a ter representantes apenas do Ministério da Mulher (anteriormente a norma previa representantes de outras pastas, como Saúde, Educação e Justiça), o CNDI foi reduzido a uma espécie de colegiado de secretários do próprio ministério, esvaziando completamente a sua vocação democrática de órgão de controle social e de articulação interministerial. Além disso, houve a redução da participação de membros da sociedade no conselho, que caiu de 14 para 3, e do próprio governo.

Bezerra explicou que a proposta que visa retomar a antiga composição e as regras de funcionamento do órgão colegiado precisa ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e depois seguir para o Plenário da Câmara. Entretanto, a pandemia interrompeu o trâmite previsto.

“Colhemos as assinaturas para que fosse direto à apreciação do plenário da casa, mas isso ocorreu às vésperas do início do recesso de final de ano, então os trabalhos foram interrompidos. Tentamos dar encaminhamento no início deste ano, mas por causa da pandemia as sessões presenciais foram suspensas e com a não instalação das comissões teremos de aguardar pela volta dos trabalhos presenciais, porque esse tipo de matéria não será apreciado nas sessões virtuais”, esclareceu o deputado.

Videoconferências

Tanto Denis Bezerra quanto Albamaria Abigalil estarão em videoconferências hoje por ocasião do Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. Ambos participam juntos da webinário “Os desafios da conscientização da violência contra a Pessoa Idosa no debate entre a vida e a economia no contexto da pandeia da Covid-19”, às 15h, pelas mídias sociais da CNBB, e Alba integra o quadro de participantes da videoconferência “Pessoa idosa, direitos humanos e o que a pandemia nos alerta”, às 17h30, com transmissão pela página do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) no Facebook (leia notícia sobre o evento aqui).

  1. Infelizmente na cultura ocidental a velhice é negligenciada. Não fosse assim, não seria necessário um estatuto do Idoso, para obrigar, por exemplo, os filhos a cuidarem dos pais nessa fase da vida.
    Com o aumento da longevidade, é preciso avançar nas políticas públicas para o idoso, desde novos protocolos de cuidado à saúde, até oferta de trabalho e renda, além de atividades de sociabilização através da cultura, esporte e lazer.

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